A propósito da "democratização da Democracia"

O exercício do poder baseia-se na delegação feita pelo povo conferindo aos eleitos a "função" de representação do mesmo (na base está, historicamente, o designado "contrato social"). O "cidadão eleito" está comprometido por um mandato dos seus eleitores, pressupondo-se que procurará satisfazer as promessas que motivam os votos obtidos nas urnas. A lógica da luta política baseia-se na procura de um grupo ou assembleia que realmente represente as diversas vontades.
O texto "Três sugestões para democratizar a democracia " é de fácil simpatia, o que em nada lhe tira o valor. Contudo, a meu ver, sofre de alguns problemas que gostaria de partilhar consigo.
"Nulos e brancos representados"
"A priori" e sem grande meditação posso concordar com a ideia geral do texto, mas a verdade é que este padece de algumas enfermidades: ao votar estou a escolher representantes. Não é, pois, o momento de me manifestar contra a "insuficiência do sistema de partidos" que, eventualmente, não me representa; se não estou satisfeito, existe a possibilidade legal e real de formar um novo movimento ou partido que satisfaça capazmente a minha vontade, os meus anseios, a minha ideia de país. Mesmo admitindo que por circunstâncias várias as eleições se transformem numa espécie de referendo ao próprio sistema eleitoral, nada "obriga" a que os eleitos se sintam com falta de legitimidade, pois se ocupam os lugares em função dos votos, estão claramente em exercício de mandato.
A leitura dos votos "em branco" e "nulos" poderá ser interpretada de forma "conveniente" pelo poder como simples desinteresse e ignorância (quase como equivalentes a abstenção). A representação destes em lugares vazios no hemiciclo, abriria portas a uma situação hipotética e absurda onde uma minoria eleita poderia tomar conta da assembeia (cheia de lugares vazios) e, legalmente, dos destinos do país. A proposta parece-me ser autodestrutiva se implementada em democracia, destrutiva do próprio sistema representativo, a menos que existam dados que no texto anteiror não estão referidos e são, portanto, presupostos do mesmo.
"Fim dos círculos distritais"
Questionar a actualidade e até a pertinência dos círculos eleitorais é perfeitamente legítimo, importante e urgente; pôr em causa o método de Hondt não me parece escandaloso - poderá até ser necessário à aplicação de um sistema mais justo e representativo. Atribuir valores diferentes aos votos, como é feito no texto, não será correcto já que o “peso” a que se refere deriva do número de eleitores de um determinado círculo, pesando mais aqueles onde a população está claramente em maior número. Criar uma lista única nacional feita a partir do todo do país iria criar alguns novos problemas: o que fazer com os votos sobrantes? Não existir um qualquer sistema de círculos não iria afastar ainda mais o povo do deputado que hoje está, em muitos casos, distante do conhecimento do cidadão? Não seria preferível um sistema misto com duas "listas" de eleição, uma confinada a círculos que teriam que ser repensados em termos de limites e de acordo com os censos e uma outra numa lista nacional, chegando à assembleia em perfeita igualdade de funções, deveres e direitos, um pouco ao jeito do sistema alemão?
"Quem legisla sobre os políticos?"
Quanto a este último ponto, revela-se aqui um problema de princípio. A separação de poderes não prevê de origem este “vício de processo”. Na realidade, os três tipos de poder (legislativo, executivo e judicial) acabam por, de uma forma ou outra, sofrer do mesmo problema. Se o que se pretende é evitar o "conflito de interesses", será que a transferência desse poder, no que respeita à legislação sobre os políticos, iria resolver ou criar novas dependências e possibilidades de corrupção? O sistema não prevê um órgão que possa ter um papel fiscalizador da própria Assembleia realmente interventivo (para lá do Presidente da República): se ele existisse não teríamos uma "tampa" na produção de legislação que em várias circunstâncias urge? Exigir uma "maioria maior" na assembleia não teria o mesmo problema? Creio que aí é a própria máquina eleitoral, em conjunto com a retaguarda que é o garante do próprio sistema democrático (a constituição e as leis eleitorais), quem ciclicamente se deve encarregar de "purgar" a própria Assembleia.
O que realmente deve ser procurado é um sistema de maior responsabilização dos deputados no que respeita à presença no Parlamento e aos trabalhos na Assembleia da República; poderia também repensar-se e rever-se o sistema de imunidade dos deputados, pondo-os num plano de responsabilidade, pelo menos, próximo ao do cidadão comum: imunidade e possibilidade de ocultação de informações em caso de suspeita de crime, não é responsabilizar o deputado, não é proteger a República, é conceder-lhe um espaço de manobra que não o põe só acima de qualquer cidadão, antes o coloca fora do próprio conceito de cidadania. Poderão retorquir alguns que a representação lhe confere esse estatuto "abstracto" que o protege. Ora eu creio que a função de representação não pode ser meramente abstracta: ela remete directamente para o voto e, portanto, para o cidadão eleitor.
Este problema tem muito a ver com a necessidade de trazer a cada partido um eleitorado que é social e culturalmente diferenciado. A "necessidade" abre portas à manipulação dos métodos e do discurso político, encobrindo, num "programa-síntese", as diferenças que existem entre os eleitores que querem conquistar: o exercício do poder durante o mandato irá certamente revelar estas "inverdades" anteriores (para amenizar o meu tom) que foram premeditadamente encobertas.
Os verdadeiros problemas passam pela formação da consciência do cidadão que, desde muito cedo, deverá ser despertado para a vital "função de eleitor", tornando a Democracia Representativa cada vez mais uma Democracia Participativa.
"Como o fazer"? - dirão alguns com um sorriso já nos lábios!
Por exemplo assim, como ensaiamos aqui.
F.Lopes